Desde 19 de outubro de 2020, tramita na 2ª Vara da Justiça Federal, em João Pessoa, a Ação Civil Pública nº 0810457-22.2020.4.04.8200, na qual o Ministério Público Federal (MPF) e o Ministério Público da Paraíba (MPPB) apresentaram à Justiça Federal relatórios sobre a administração do Hospital Napoleão Laureano produzidos por comissão de auditoria formada por integrantes do Conselho Regional de Contabilidade (CRC), Conselho Regional de Administração (CRA) e Conselho Regional de Medicina (CRM).
O MPF e o MPPB têm apurado, nas respectivas esferas de atribuição, a debilidade nas finanças da Fundação Napoleão Laureano e os inquéritos cíveis instaurados já resultaram em ações judiciais. A mais recente delas foi ajuizada em outubro de 2020, na qual os órgãos fiscais da lei pediram o afastamento imediato dos membros do conselho deliberativo da fundação que mantém o hospital, após as investigações revelarem graves infrações e ilícitos praticados pela diretoria da Fundação Napoleão Laureano no gerenciamento dos recursos financeiros e na administração do Hospital Napoleão Laureano.
Confira o raio-x feito pelos órgãos ministeriais:
Fraude contábil
De acordo com a auditoria realizada pelo CRC na contabilidade do Hospital Napoleão Laureano, referente ao período de 2015 a 2019, foram detectadas várias anomalias contábeis e financeiras. Os auditores descobriram a existência de fraude nos balanços, balancetes e contratos examinados; além de dívidas significativas omitidas, intencionalmente, pela FNL ao Ministério Público.
Um exemplo da omissão intencional de dívidas detectada pela perícia do Conselho de Contabilidade refere-se à contratação de empréstimo de dez milhões na Caixa Econômica Federal, em que a Fundação Napoleão Laureano lançou no balanço de 2016 essa quantia, quando, “em verdade, o endividamento correto seria de 24 milhões, ou seja, houve uma omissão de 14 milhões no passivo da entidade”, consta em trecho de ata de audiência citada pela magistrada na decisão, pela relevância da fraude detectada.
Conforme consta na decisão, o relatório da auditoria do CRC indica que o saldo devedor dos empréstimos, ao final de cada ano, ensejou o lançamento de R$ 29.867.413,00 (dado informado pela própria fundação), quando de fato, o valor correto, descoberto pelo CRC, seria de R$ 45.775.956,58. A fraude contábil consistiu em não incluir juros e encargos, mas apenas o valor principal das dívidas, para dar a impressão de que o endividamento do hospital seria menor. Diante da análise do CRC, apresentada nos autos, a magistrada concluiu que “se o saldo devedor no fim de 2019 era ainda mais elevado, todos os indicadores calculados pelo CRC em seu relatório eram ainda piores”.
Instituições de assistência à saúde prestadoras de serviços ao SUS são beneficiadas com margem consignável de até 35%, na contratação de empréstimos bancários. Tal limite de endividamento é fixado pela Portaria nº 2182/2015 do Ministério da Saúde. No entanto, a magistrada federal ponderou que “a licitude dessas operações, porém, não significa que seja recomendável que a instituição contrate todos os empréstimos disponíveis no mercado, até o limite permitido pelo Ministério da Saúde, dado o comprometimento que isso pode causar na sua saúde financeira”, conforme consignado na decisão.
De acordo com o relatório de auditoria do Conselho de Contabilidade, “pode-se entender claramente que há uma inversão de prioridades por parte da gestão nas atividades fins da entidade, ocorrendo uma substituição dos gastos com tratamento de pacientes portadores de doença oncológicas, para financiamento das despesas com amortização de dívidas, juros e demais encargos sobre empréstimos bancários”.
Série de irregularidades
A auditoria do Conselho de Contabilidade ainda detectou diversas outras irregularidades como, por exemplo, grande quantidade de sócios de pessoas jurídicas contratadas também figurando como funcionários da instituição, sob regime celetista, o que ocasionou despesas adicionais mensais e anuais para a fundação; estipulação de pagamentos de contratados pelos seus serviços, em forma de percentuais sobre os recebimentos do SUS, plano de saúde e particulares, acarretando, com isso, pagamentos de profissional da área médica em valor mensal superior à média salarial de profissionais nessas áreas; bem como contratação de serviços não ligados diretamente à atividade do hospital, com significativos custos mensais em desacordo com realidade de mercado.
93 títulos protestados
O excesso de endividamento da fundação foi apontado pelo Conselho Regional de Contabilidade como “a principal causa de insolvência da instituição, levando ao estado de penúria em que ela se encontra hoje”. O relatório da auditoria do CRC informa que o nível elevado de endividamento “associado à falta de capacidade financeira da entidade em liquidar seus compromissos atingiu um nível crítico. Diante dessa constatação, foi solicitada uma certidão positiva de protesto, junto ao Cartório Souto, em que ficou comprovado em 17/03/2020, a existência de 93 protestos em desfavor do Hospital Napoleão Laureano”, cita o relatório contábil.
Pesquisa no portal do Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba mostra que, desde outubro de 2018, há quatro ações de execução de títulos extrajudiciais ou monitórias, ajuizadas por empresas fornecedoras de medicamentos e materiais médico-hospitalares em desfavor da Fundação Napoleão Laureano por inadimplência. Durante a auditoria, o CRC constatou que, diante do quadro de endividamento recorrente, a fundação estava com dificuldades de relacionamento com os fornecedores “que não desejam mais fornecer materiais médicos hospitalares e outros de consumo da administração aprazados. Inclusive, alguns fornecedores estavam exigindo pagamentos antecipados ou só forneceriam os bens mediante quitação de fornecimentos anteriores”, cita o relatório dos auditores contábeis.
Questão de legalidade
A má fé detectada na contabilidade apresentada pela Fundação Napoleão Laureano foi considerada pela juíza um aspecto “de extrema relevância na formação do convencimento deste juízo”, pois, segundo argumentou “já não se trata de uma opção de gestão dos administradores da FNL ou do HNL, mas, sim, de uma conduta ilícita, ao esconder a real situação financeira do hospital. É com base nas demonstrações contábeis e no nível de endividamento ali registrado que a FNL tem podido assinar declarações, afirmando seu estado de solvência, para ter acesso a mais crédito no sistema bancário”, apontou.
Além disso, a magistrada reforçou que “essa conduta seria indicativa de uma intenção de mascarar a verdadeira situação financeira do hospital” e complementou: “Ocorre que, uma vez que o gestor decida que deve enfrentar essa situação, através da contratação de empréstimos no mercado financeiro, não pode lançar nas demonstrações contábeis valores inverídicos para o saldo devedor dessas operações, fazendo parecer que o endividamento já contraído pelo hospital é menor do que de fato é. Esse expediente não é uma opção gerencial, mas uma questão de legalidade”, concluiu.
Amadorismo na administração
O relatório produzido pelo Conselho Regional de Administração apontou diversos problemas na gestão do hospital pela Fundação Napoleão Laureano, entre eles, a grande concentração de poderes nas mãos do diretor presidente, fato confirmado por depoimentos de médicos ouvidos pelo Ministério Público; excesso de endividamento da fundação, como opção de gestão da presidência, desencadeando quadro de insolvência; ausência de planejamento estratégico, planejamento orçamentário, fluxograma, política de controle interno ou de estoques; falta de critérios para estipulação de remunerações e gratificações, desvios de função, ausência de planejamento de aquisições de materiais de consumo e insumos, através de simples pesquisas de preços, falta de planejamento e controle generalizado, envolvendo aspectos básicos a serem objeto de redobrada atenção de qualquer organização, tais como variações de custos e levantamento rigoroso de estoques; ausência de plano de cargos, carreiras e salários, apesar de ter um quadro de cerca de 800 empregados.
Sobre os problemas constatados pelo CRA, a Fundação Napoleão Laureano afirmou que o hospital é bem informatizado e possui todas as informações em tempo real e que todas as informações necessárias para as tomadas de decisões, a curto, médio e longo prazo, podem ser obtidas “através dos relatórios extraídos dos softwares”. A magistrada concluiu que o fato de a FNL considerar suficiente para o funcionamento da instituição ter “informações em tempo real” confirma o relatório do Conselho de Administração: “que o hospital opera sem planejamento, apenas enfrentando um dia de cada vez”. Para a juíza, as afirmações da FNL “apenas evidenciam o amadorismo da administração do hospital”, postura que “certamente é nociva para uma boa gestão e tem impactos negativos sobre a prestação de serviços pelo hospital, bem como gera mais custos para sua operação”. A decisão judicial foi taxativa: “está claro que lhe faltam os instrumentos mais básicos de gestão de qualquer organização”.
Gestão temerária
Por sua vez, os relatórios do Conselho Regional de Medicina indicaram vários problemas, entre eles, insuficiência dos serviços médicos, por falta de medicamentos em geral, de quimioterápicos e de insumos, gerando a interrupção de tratamentos, com risco de vida para os pacientes, inclusive na pediatria do hospital, havendo casos de transferência de pacientes para tratamento em outro estado; conflito de interesses na atuação do vice-diretor geral, que também prestava serviços de tomografia ao hospital, através de empresa terceirizada; centralização de poderes no diretor do hospital, que substitui outros diretores em caso de desentendimento. O CRM atribuiu essa situação à gestão temerária da FNL: “O desequilíbrio financeiro, e uma gestão mais eficiente e transparente dos recursos, evitando o atraso e/ou o não pagamento de fornecedores e prestadores de serviço, bem como ajustes na administração hospitalar – que merecem análise específica – nos pareceu ser a causa da maioria destes problemas”, concluiu o Conselho de Medicina.
Algumas conclusões da Justiça: Na decisão de dezembro de 2020, na qual retirou o segredo de justiça sobre os autos, a magistrada federal enumerou algumas conclusões que tirou: “a forma de gestão do Hospital Napoleão Laureano está distanciada das diretrizes mais básicas da gestão de organizações do seu porte, faltando-lhe planejamento, definição de objetivos e ferramentas para o acompanhamento da execução desse plano e para a avaliação correspondente, bem como uma política de recursos humanos definida. A falta desses instrumentos certamente causa impacto nas finanças da instituição. O HNL tem contraído alto volume de empréstimos no mercado financeiro, a um ponto em que parece começar a haver impacto na sua disponibilidade financeira para cumprir sua atividade-fim, que é a prestação de serviços de saúde, tendo como reflexo, especialmente, o desabastecimento das farmácias no ano de 2019”, inferiu.
A magistrada também entendeu que não é possível excluir que outros fatores estruturais do SUS afetem essa situação, principalmente a falta de correção da tabela de serviços e a insuficiência do teto dos serviços de média e alta complexidade do município de João Pessoa. No entanto, ressalvou que “mesmo que esses aspectos tenham um importante impacto sobre a saúde financeira do HNL, não é uma opção gerencial a forma como essa instituição vem efetuando os registros do passivo na sua contabilidade, cuja fidedignidade e transparência são essenciais para as decisões administrativas de gestores do SUS – ao manter contrato para a prestação de serviços de saúde com o HNL, contando que estes serão prestados e sem interrupção – e para as instituições financeiras que vêm contratando empréstimos com o HNL”.
Poder concentrado
Ainda na decisão de dezembro de 2020, a juíza federal consignou que está claro que faltam ao Hospital Napoleão Laureano “os instrumentos mais básicos de gestão de qualquer organização”. Um fator apontado pelo Ministério Público como causador das dificuldades verificadas pelos auditores no gerenciamento da Fundação Napoleão Laureano encontra raiz nas disposições do próprio estatuto da fundação, o qual estabelece que “(…) a presidência e a secretaria do Conselho Deliberativo são exercidas, respectivamente, pelo diretor-presidente e pelo diretor-secretário da Diretoria Executiva, ou seja, as mesmas pessoas presidem e secretariam o órgão máximo da instituição (Conselho Deliberativo)”. “É como se os papéis reservados às figuras do outorgante e do outorgado se confundissem na mesma pessoa”, ponderam os órgãos fiscais da lei.
O MPF e o MPPB também apontaram que o diretor-presidente da Fundação Napoleão Laureano tem atribuição de nomear e exonerar os empregados da fundação e os membros da diretoria do hospital, concentrando grande poder nas suas mãos. Os órgãos ministeriais ainda apontaram que o conselho fiscal da fundação é integrado por membros do conselho deliberativo, o que significa que o órgão fiscal não tem autonomia para fiscalizar se compõe o órgão fiscalizado. Para os órgãos ministeriais, mesmo que não houvesse fraude contábil, a gestão temerária já justificaria o afastamento do corpo dirigente da instituição, em se tratando de uma fundação voltada ao interesse público.
O pedido de afastamento da direção da Fundação Napoleão Laureano e nomeação de interventor deve ser apreciado pela magistrada após a contestação do presidente da fundação.